Deixada pra Trás

Que alvoroço todo era aquele em plena madrugada? Yuka abriu os olhos e sentou-se em sua cama, não conseguiria dormir com toda aquela correria e gritaria do lado de fora. Não fazia ideia do que podia estar acontecendo, mas era certamente algo 'grande'. Se dirigiu até a janela de seu quarto e botou a cabeça pro lado de fora. Quase todas as janelas daquele imenso complexo estavam iluminadas. Era fora do comum ver a sede da Ordem Negra, tão cinza e monumental, cheia de luz e vida durante a noite, parecia até estar em festa. Só que não era bem isso que estava acontecendo.

A garota já se preparava para sair de seu quarto pra averiguar a situação quando a porta se abriu de forma violenta, como se quem o fizesse estivesse com pressa. Dois homens vestidos com sobretudo negro adentraram o cômodo com certa pressa e nervosismo, acendendo a luz imediatamente. Os olhos deles vasculharam todo o quarto, até que encontraram a menina próxima à janela, surpresa com a visita inesperada. O mais alto deles, loiro, suspirou aliviado. O outro não perdeu tempo e se aproximou de Yuka com passos apressados.

- O que você sabe dessa fuga!? Você está envolvida nisso!? - Exclamou,furioso, encarando a menina nos olhos. Tinha cabelos castanhos e curtos e uma cicatriz na bochecha direita. Era um homem que tinha a expressão de poucos amigos naturalmente e que, naquele estado de espírito, parecia um cão.

Do que ele estava falando? Fuga? Mais jovens haviam deixado a Ordem, talvez? Igual sua irmã fizera outrora? Mas Yuka não sabia de nada, não dessa vez. Ainda assim, eles desconfiavam dela, o que não a surpreendia. Nunca deixaram de olhar torto para a garota desde que Saya fugira. Provavelmente estavam bastante chocados por verem que ela ainda estava ali, alheia à confusão. O que ela tinha a dizer? Nada de relevante. E nem teve tempo de responder, pois um terceiro membro da Ordem Negra adentrou o quarto. Este muito mais calmo do que os outros, carregando consigo um ar de superioridade e elegância. Suas vestes eram mais sofisticadas. Seu cabelo era grisalho e um óculos em formato circular de armação antiga estava diante de seus olhos.

- Deixem a menina em paz. Saiam. - Ordenou sem delongas e foi obedecido de prontidão. Sua voz, rouca e grave, Yuka conhecia muito bem.

Noah era o seu nome. Um dos grandes nomes da Ordem Negra, era o homem que acompanhara a garota e sua irmã desde o princípio. Provavelmente sabia tudo sobre ela e a tratava com bastante respeito e até simpatia. O fato era que ele sabia como lidar com as pessoas.

- Yuka, minha querida, parece que alguns de nossos filhos decidiram abrir asas e voar nessa noite. Um comportamento lastimável e imperdoável. - Sua voz era séria e ao mesmo tempo tranquila. - Devo assumir que você não sabe de nada, certo? Já superou toda aquela história, afinal de contas.... - E encarou a menina com seus olhos profundos. - Estou certo?

Um sorriso se abriu nos lábios do homem ao ouvir a declaração da garota, que parecia realmente estar falando a verdade. O homem já sabia que ela não estava envolvida, afinal ele era inteligente e conhecia muito bem aqueles que estavam ao seu redor. Yuka se perguntava como ele não havia previsto aquela fuga. Talvez aquilo tudo estivesse nos planos de Chronica, afinal de contas...

- Sei muito bem disso, minha querida. - Ele disse, seu tom de voz sempre confiante e sereno, como o de um pai. - É muito bom saber que você está do nosso lado. Inclusive, acredito que você poderá provar em breve a sua lealdade à nossa causa. - Quando ele disse isso, seus olhos profundos encararam o rosto de Yuka com bastante interesse. Um sorriso ligeiramente macabro surgiu embaixo de seu bigode. - Essa fuga não pôde ser evitada, mas não há o que temer. O que está escrito não poderá ser mudado. E o seu futuro... Seu belíssimo futuro ao nosso lado já está traçado nas páginas da Crônica, minha jovem. Amanhã cedo conversaremos, agora descanse. - Seu tom de voz era natural, como se o que ele acabara de dizer não tivesse a mínima importância.

Noah então se dirigiu até a porta e não demorou muito para deixar o quarto, não sem antes desejar uma 'boa noite'. Quando a porta se fechou, Yuka estava sozinha novamente. Uma fuga havia acontecido e ela não havia feito parte disso, o que era um motivo de tranquilidade. Ainda assim, a menina não parecia estar alheia aos efeitos daquele incidente. Algo havia mudado, algo havia acontecido. Provar a lealdade? Do que ele estaria falando, afinal de contas?

Yuka estava confusa e ainda surpresa com todas as reviravoltas que a sua vida dava. O destino parecia mesmo gostar de brincar com ela...

Cheia de questões e atormentada pela ansiedade, Yuka demorou para adormecer. Foram longos minutos de reflexão, mas aos poucos seus olhos se fechado...

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Quando abriu os olhos novamente, a claridade do sol já entrava pela janela e era possível ouvir o típico barulho da manhã: passos no corredor, ruído da movimentação nas ruas, o canto dos pássaros na janela. Yuka sabia que aquele seria um dia e tanto, por isso se apressou em trocar de roupa e realizar suas necessidades matinais. Em pouquíssimo tempo estava pronta diante da porta. Respirou fundo e saiu. Seu destino? O refeitório principal, local em que comia diariamente e onde se encontrava com todos os seus semelhantes. Era também o local onde anúncios e comunicados eram feitos. Devido ao acontecimento da noite passada, a pauta daquela manhã seria longa...

Yuka sentou-se em uma das mesas do fundo acompanhada de outros orfãos, mas não deu a mínima pra eles. Conhecia cada um deles, mas não se importava. Só conseguia pensar no que Noah havia lhe dito de madrugada. Comia o omelete distraída e dava longos goles em seus suco de laranja, até que uma voz ecoou pelo salão,chamando sua atenção. Era um dos superiores da Ordem começando o seu discurso.

Ele falou brevemente a respeito da fuga e disse para que os jovens não se preocupassem, pois medidas seriam tomadas. Reiterou que aquela atitude não seria tolerada pela instituição. Claro, tudo isso de uma forma muito mais enrolada e entediante. Era o exato discurso que Yuka estava esperando ouvir.

- Ei, Yuka.. - Uma das meninas ao seu lado a chamou - Acho que você ainda não foi chamada... Vai ter uma segunda onda de fugas. Hoje a noite. Já está tudo planejado, você vem coma gente,né? - A inocência na pergunta da garota era evidente e ela parecia realmente esperançosa. Nem eram assim tão amigas, mas aquela jovem parecia realmente gostar de Yuka - Só não chame mais pessoas e seja discreta, te passarei os detalhes depois, ok? - E piscou.

    Depois de acordar, sentiu-se mais tranquila. As poucas horas conseguiram descansar a mente da menina e assim ela tomou o seu dia, apesar de saber que aquele não seria simplesmente mais um dia como qualquer outro. Ao chegar ao refeitório, um representante da Ordem Negra discursou de forma já esperada. Porém, o convite feito pela colega que estava sentava ao seu lado chegou de forma inesperada para Yuka. Ela a fitou, analisando sua expressão durante algum tempo. Ela acabou de dizer isso mesmo? Ela não está brincando, não é?

    – Erm... – tentou falar alguma coisa, então desviou o olhar para baixo. – Eu... Eu não tenho certeza... Até. – disse rapidamente antes de levantar para evitar que a garota lhe dirigisse a palavra novamente. Yuka caminhou apressadamente para fora do refeitório, até que encostou suas costas na parede fria do corredor e apertou a gola do seu vestido, suspirando. Eles não podem estar sérios sobre isso. Eu devia ter dito a ela... Devia ter dito pra desistir dessa ideia. O que eles estão tentando fazer? Ninguém tem a menor chance contra a Ordem! Sabe Crônica o que deve ter acontecido aos fugitivos de ontem. E mesmo assim... O que eu deveria fazer...? Ficou cabisbaixa, encarando o nada naquela posição durante algum tempo. Até que voltou para si e continuou a andar pelo corredor, tentando evitar o máximo o possível as pessoas ao seu redor.

Os passos no corredor eram vazios e não tinham rumo. A mente da garota, no entanto, estava uma bagunça: como ela deveria lidar com as informações que acabara de receber? Apenas deixar que tentassem e tivessem um final trágico? E se conseguissem escapar, não teria sido cúmplice por não tentar impedí-los? Yuka não sabia o que fazer e estava confusa, portanto preferiu evitar qualquer tipo de interação, ignorando todos que encontrava.

Até que uma voz chamou pelo seu nome, uma voz que não podia ser ignorada. Madura e firme, a mulher que estava diante de Yuka se mostrava séria e autoritária.

- Yuka, me acompanhe.

Com longos cabelos roxos e traje todo negro, a alta mulher de curvas avantajadas desfilava no corredor com seu salto alto. A garota a seguiu, sem opções, ligeiramente sem graça e apreensiva. Quando chegaram diante da sala da mulher, adentraram sem delongas e a jovem logo se sentou em uma das desconfortáveis cadeiras ali presentes.

A mulher, por sua vez, sentou-se sobre uma confortável poltrona de couro e encarou Yuka nos olhos. Entre delas, apenas uma mesa cheia de papéis.

- Acredito que já tenha sido avisada a respeito da missão que temos para você. - Ela dizia com seu tom de voz soberano - Nós queremos que você fuja com o grupo esta noite, facilitaremos as coisas para que tudo corra bem. Você será a nossa espiã no meio deles, Yuka.

- Vejo que você está decidida. - A mulher tornou a dizer, seus olhos mirando a garota como se ela fosse uma presa indefesa. Ela então abriu a gaveta e tirou de lá um colar antigo. Ele era todo de prata, decorado no centro com uma pedra negra, tão escura quanto um carvão. - Use isso. Dessa forma saberemos a sua localização, não importa onde vá. - As palavras soaram de forma perigosa, como uma ameaça, mas talvez fosse apenas impressão da menina, que estava assustada - Você deverá agir naturalmente e seguir o grupo. Provavelmente receberão assistência de pessoas do lado de fora. Queremos que você fique um bom tempo no meio deles e consiga informações a respeito deles. Quando a hora chegar, nós vamos te buscar e pegar todos nossos filhos de volta. - A mulher explicou de forma objetiva, com um certo sadismo que tornava tudo mais assustador. Ao mesmo tempo, continuava parecendo uma tirana sem emoções.

Yuka estava nervosa, mas ouviu tudo com atenção, afinal não estava em posição de deixar qualquer detalhe passar. A garota tinha medo daquelas pessoas e decidiu que seria melhor obedecê-los. Chronica estava de olho, afinal.

- Você é capaz de fazer isso? - A pergunta soou como um tiro em seu peito. Direta, a mulher não amenizou nem um pouco a situação ao encarar Yuka com seu olhar predador. Ao mesmo tempo que buscava pela confirmação, parecia zombar da inferioridade da menina, pressionando-a.

    Não havia como tentar se mostrar mais segura, estava claro que aquela mulher queria mesmo colocá-la contra a parede. Mas se uma decisão houvera sido feita, não tem mais volta. Yuka colocou o amuleto em suas mãos, sentindo com ele toda a responsabilidade que deveria carregar. Tentava se acalmar internamente, afinal, a missão não soava tão perigosa. Ao menos para ela... Na teoria, teria que simplesmente coletar informações, mas isso talvez acabasse em tragédia para o grupo de fugitivos. Talvez fosse mesmo para ser assim. Mesmo que soe errado, se esse é o destino que Chronica reservou, então assim deve ser. Se coisas ruins acontecem a quem desafia suas ordens – como Yuka já bem sabe – então enquanto estivesse seguindo as ordens estaria salva.


    Por que então essas pessoas da Ordem ainda a assustavam tanto? A fala daquela mulher, seu olhar... Tudo era tensão nas faces da garota, que nada poderia fazer senão aceitar sua posição inferior. Com o resto da coragem na fala depois daquela indagação, deu a que esperava ser a última confirmação para essa missão:
    – Sim... Eu vou tentar meu melhor.